Da Catalunha para o Mundo

Blog da Taíza Brito e do Gerard Sauret

Turismo histórico na Barcelona do tricentenário (1714-2014)

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Simplesmente impressionante a longa matéria produzida em Barcelona por Andreia Marques Pereira para o jornal português Público. A jornalista percorreu a pé toda a rota turística do tricentenário, efeméride que comemora a derrota militar da cidade, em 1714, e que culminou a perda das liberdades nacionais da Catalunha. Apresentamos aqui uma versão resumida. Para ler o texto completo, acessar o link a seguir:

Em Barcelona, a liberdade anda nas bocas do mundo

Por Andreia Marques Pereira

30.08.2014

A 11 de Setembro de 1714, os barceloneses mostraram o seu “amor extremo pela liberdade”, escreveu Voltaire. Três séculos depois, assinala-se o tricentenário de um processo que pôs fim a grande parte da autonomia catalã. As comemorações lançam luzes sobre o passado para compreender o presente e antecipar o futuro. Voltamos a perder-nos por Barcelona, entre clássicos e boas novas pelo caminho.

(…) O Parc da Ciutadella está ao lado e agora mais perto do que nunca do Passeig del Born, esta rambla que é o centro nervoso do bairro que ainda mantém uma certa aura medieval — a recuperação do Mercado do Born trouxe uma requalificação dos espaços em volta, com uma enorme esplanada a rodeá-lo que é o novo e mais directo caminho para o parque. E aqui é também o coração das comemorações do Tricentenário – assim mesmo, apenas “tricentenário”: do 11 de Setembro de 1714, a data que assinala “o amor extremo dos barceloneses pela liberdade”, como escreveu Voltaire. Uma liberdade que está outra vez na boca de muitos catalães que clamam por um referendo sobre a independência da região autónoma.

Num canto da Praça da Catalunha, uma banca flanqueada pelas bandeiras da Catalunha e da União Europeia chama-nos a atenção. O toldo é amarelo, as mesas estão cobertas de panos azul forte; há t-shirts penduradas, artesanato, panfletos, posters com uma urna de voto (e dois boletins de votos: ou ) e cinco pessoas lá dentro respondem à curiosidade de quem passa. Aqui, na principal encruzilhada turística de Barcelona (no subsolo, metro e comboios chegam e partem em movimento contínuo, numa das esquinas as Ramblas iniciam o seu caminho até ao mar, já aqui para cima é a passerelle do Passeig de Gracia que se estende, o bairro Gótico está a espreitar) são muitos os estrangeiros que se aproximam. E também eles são instados a assinar uma petição pela realização do referendo catalão (marcado para 9 de Novembro) que o governo espanhol recusa. A iniciativa é da Assembleia Nacional Catalã (ANC), criada oficialmente em 2012, uma organização “popular, unificada, plural e democrática que trabalha para que a Catalunha se torne um novo estado europeu”, lê-se no site oficial. “Não é um partido nem deseja tornar-se num”, continua, “é uma organização de cidadãos que participam livremente como indivíduos e votam nas eleições em diferentes partidos. O que os une é a convicção de que a Catalunha tem o direito a ter a sua voz própria no mundo. Ou seja, a tornar-se um estado democrático, como qualquer outro.” “É uma questão de democracia do Estado espanhol”, diz-nos Víctor Acedo, que nem é catalão — vem de Zamora, “mais perto de Portugal”. E Portugal é chamado à liça por uma companheira de lides, que lembra que “os catalães querem o que Portugal conseguiu em 1640”. Não é a única zona de Barcelona que tem estas bancas — estão em todos os distritos, dizem-nos, mudando regularmente de bairro.

Não se pode dizer que Barcelona fervilhe com as celebrações do Tricentenário nem com as pretensões independentistas. Já vimos, noutros momentos, centenas de bandeiras catalãs em janelas e varandas por toda a Barcelona — por estes dias, esses ímpetos parecem estar mais contidos, com uma ou outra espreitando nas fachadas do centro da cidade, e com algumas mais nos bairros mais tradicionais, como a Gracia. O Tricentenário BCN, iniciativa cidadã com apoio do governo para assinalar a data, esse, instalou-se nas ruas, em alguns locais mais ou menos icónicos da cidade, com instalações temporárias por artistas internacionais convidados a reflectirem sobre o seu significado; e foi-se processando ao longo do último ano — as celebrações começaram em 2013 — em colóquios, concertos e até um show cooking de Ferran Adrià. O encerramento será a 24 de Setembro, coincidindo com o final das Festas de la Mercè, a maior festa da cidade, mas a “Diada”, um ano depois da abertura, será um dos pontos altos — o Dia da Catalunha, assinalado desde 1980, quando foi reinstaurado do parlamento catalão, este ano é também o aniversário redondo. O Tricentenário. O 11 de Setembro catalão.

Voltamos ao Born. Voltamos muitas vezes ao Born. No Mamainé, esquina com o Passeig del Born, os cocktails sucedem-se calmamente na esplanada. Dizem que têm os melhores de Barcelona, em especial os mojitos. Gostos não se discutem — é, pelo menos, um dos mais cubanos bares da cidade e é o nome que o revela: “Mama Inés”, pelo pianista e cantor Bola de Nieve, transforma-se num redondo “Mamainé” pelo seu sotaque cubano. Alguns edifícios antes, na direcção da igreja de Santa Maria del Mar, o número 18 do passeio assinala a fronteira entre o Born pré-1714 e o Born pós-1714; alguns edifícios depois, o Mercado do Born guarda o Born pré-1714 que o Born pós-1714 enterrou. Alguns dizem que é Barcelona, e não apenas um bairro (na verdade Ribera-Born), que aqui se reencontra com a sua história. Alguns vêm aqui a síntese de uma Catalunha que continua a querer “viver livre” (viure lliure), o mote para este ano de tricentenário, herdeiro do lema dos lutadores de 1714 “viveremos livres ou morreremos” (viurem lliures o morirem).

No século XVII e início do século XVIII, o Passeig del Born não era um passeio, era uma praça. Uma espécie de plaza mayor barcelonesa, defende o historiador Albert Garcia Espuche no livro La ciudad del Born. Economía y vida cotidiana en Barcelona (Siglos XIV a XVIII). Aqui cruzava-se toda a cidade, ou não fosse este o seu centro mais activo com dinâmicas comerciais, industriais e portuárias pujantes. Até que chega a Guerra da Sucessão de Espanha. A Catalunha, depois de apoiar o rei Bourbon, herdeiro designado do monarca anterior, vê as suas liberdades e autonomias serem restringidas e toma partido do pretendente austríaco que chega a estabelecer a sua corte em Barcelona e garante o respeito pelas liberdades catalãs. Numa guerra de dimensões continentais que pôs em confronto modelos e conceitos políticos distintos, quando as grandes potências chegam a acordo a Catalunha é abandonada à sua sorte: depois de um sítio que durou um ano, a 11 de Setembro de 1714, Barcelona capitula. Fica à mercê de Filipe V, o primeiro da dinastia Bourbon em Espanha que, como bom neto do seu avô, Luís XIV, o rei-sol francês, é absolutista convicto e está determinado a não ter complacência com os catalães. É o final das Constituições e instituições catalãs, direitos seculares: a Catalunha perde autonomia económica, judicial, fiscal, monetária, aduaneira e legislativa; o catalão deixa de ser língua oficial; todas as universidades são encerradas.

E em Barcelona constrói-se a maior cidadela militar da Europa do tempo, para controlar os insurrectos catalães. Parte do bairro La Ribera é demolido — mais de mil residências, cerca de 20% de Barcelona, são arrasadas para dar lugar às instalações militares. É uma ínfima parte desse 20% da Barcelona do século XVIII que agora emerge no Mercado do Born Centro Cultural, descobertas que foram ruínas desse conjunto na altura em que o mercado estava a ser transformado em biblioteca. Já não houve biblioteca no mercado construído no século XIX depois da destruição da cidadela e que foi o mais importante da cidade até ao seu encerramento em 1977. Há um achado arqueológico, feito museu com entrada directa numa máquina do tempo: 1714 grita liberdade para 2014.

Barcelona aos pés

(…) É quarta-feira do início de Agosto e a zona está enxameada de turistas. Mas são muitos mais os que se fixam no arco do que propriamente no mapa. Tão-pouco se parecem entender com outras propostas do Tricentenário BCN: os cubos gigantescos com fotos que fazem parte do projecto de instalações artísticas e arquitectónicas efémeras BCN RE.SET, que até 11 de Setembro propõem uma reflexão sobre “identidade, liberdade e democracia”; ou a pequena torre translúcida que, através de banda desenhada, devidamente contextualizada, descreve um dos episódios-chave do 11 de Setembro de 1714 e se insere no itinerário “La Batalla Final”, que recorda o dia através dos seus protagonistas em vários locais da cidade. Aqui no Arco do Triunfo, que corresponde ao antigo Baluarte del Portal Nou, é o sargento-maior Juan Sebastián Soro que seguimos; diante do Born Centro Cultural é Antonio de Villarroel, o comandante supremo das forças catalãs — e no Mercado de Santa Caterina, construído no local onde se ergueu um convento com o mesmo nome, tropeçamos em Pròsper van Verboom, enquanto buscávamos “as melhores pizzas de Barcelona”, segundo vários italianos aqui residentes, as da pizzaria Nap, numa noite que se haveria de revelar de tormenta estival. E foi preciso estarmos atentos ao Tricentenário BCN para percebermos que aquele grande retalho de tijoleira vermelha que forma uma pequena depressão no meio do cinzento dos passeios, ao lado da igreja de Santa Maria del Mar, não é mais um dos muitos exemplares de arte pública que povoam as ruas de Barcelona. O Fossar de les Moreres é, sim, uma homenagem aos mortos durante o cerco de Barcelona de 1714, que foram aqui enterrados, “descobertos” em 1989 e para sempre recordados a vermelho, como o sangue vertido.

As rotas de 1714

(…) Longe da areia segue a rota do Tricentenário que, contudo, se concentra na Ciutat Vella. Onde também se concentram os turistas.

Se olhamos para o programa das Rotas de 1714, percebemos que as paragens históricas dos feitos dessa época se concentram entre as Ramblas e o Parque da Cidadela, percorrendo os bairros Gótico, Ribera-Born, Santa Caterina y Sant Pere. Isto equivale a um labirinto de ruas e ruelas, num emaranhado onde é fácil perder o rumo, ou não estivéssemos na cidade medieval. É aqui que palácios severos de pedra e enormes portas de madeiras, conventos, igrejas, antigos cemitérios, restos de muralhas nos contam a história de 1714 — unidos a muitos outros que revisitam toda a história de Barcelona. (…)

Único é também o Raval, um bairro que, graças à sua proximidade com o porto, passou de bairro industrial e de operários em que se tinha transformado no século XIX a bairro de imigrantes. Chegou a ser conhecido como o “bairro chinês” de Barcelona mas agora já não são os chineses que dominam a sua paisagem; por estes dias, a comunidade de paquistaneses e indianos é maioritária. A maior mas não a única, neste bairro que é um dos mais multiculturais de Barcelona mas nunca perdeu o seu carácter proletário mais marcado. E se as paragens históricas do Tricentenário cabem quase todas do lado direito das Ramblas — a única excepção no Raval é o antigo Hospital de Santa Creu, que recebeu os feridos do conflito e agora é Biblioteca da Catalunha – as paragens artísticas, BCN RE.SET, com prazo de validade, é certo, espalham-se muito pelo Raval. (…)

De volta à cidade velha, buscamos com ajuda do telemóvel uma das intervenções do Tricentenário que não terá vida efémera. A poucos minutos da catedral, descobrimos a minúscula e anódina Praça Isidre Nonell. Um muro é agora um mural. El mundo nace en cada beso é a contribuição do artista barcelonês Joan Fontcuberta para as comemorações e para a cidade, já que este mosaico “foto-cerâmico” é permanente. Composto por quatro mil peças, o mural tem de ser visto à distância (a esplanada do Bun Bo Viêtnam é uma boa opção) para se ter a percepção de duas bocas entreabertas, beijando-se. A obra pode considerar-se um projecto colectivo, já que as peças foram compostas por fotografias enviadas por habitantes de Barcelona sob o repto de “um momento de liberdade”. Para Barcelona, a liberdade é um beijo, está visto — e “Barcelona vai converter-se na cidade do beijo”, profetizou o presidente da câmara durante a inauguração. Não por enquanto: poucos são os que passam, menos ainda os que reparam no mural. Mas há quem tire fotografias — só não vimos nenhum beijo.

petó

(…)

Aquesta entrada s'ha publicat en Público el 31 d'agost de 2014 per TaizaBrito

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